domingo, março 4

O alho, a cruz e a luz.

Três são os maiores temores de um vampiro conforme reza a lenda. Existem outros, mas esses são os mais recorrentes nas películas assustadoras. O alho, a cruz e a luz. O primeiro citado desconheço os motivos, mas, talvez, o que se diz popularmente a respeito do nobre tempero, quanto a uma certa propriedade de purificar o sangue, seja o motivo; o segundo nos leva a crer que é apenas uma questão de fé, mas, considerando o belo filme de F.F. Coppolla baseado na obra de Bram Stocker, “O Drácula de Bram Stocker”, a cruz é um tormento para VLAD DRACUL pelo pregresso envolvimento deste com a causa cristã de expansão de seus domínios, dizimando, até mesmo com requinte de crueldade, todos os seus oponentes e a posterior revolta contra aquele sistema em que acreditava e servia, inclusive amaldiçoando seu símbolo maior; já o terceiro item, a luz, é, a meu ver, extraordinário, absolutamente irresistível.

Se os dois primeiros elementos têm a capacidade de afugentá-lo, evitando assim a aproximação mortal com o nosferatu, já em contato com o terceiro elemento o “empalador” é incinerado. Interessante que a luz pulverize criatura tão poderosa – tem a força de mais de dez homens, hipnotiza apenas com seu olhar, transforma-se em outras criaturas (morcegos, ratos, feras), voa e outros poderes.

Para quem teve a oportunidade de assistir o incrível filme de F.F. Coppolla percebeu que o Conde Vlad Tesek Dracul não nasceu sorvedor de sangue, embora tenha derramado bastante de seus inimigos; quem lhe trouxe á luz não foram às trevas, embora suas sombras fossem o que o guiava. Tesek - o empalador, Dracul - o demônio vai aos poucos se deliciando com o sofrimento que ele próprio impingi a seus inimigos, aos poucos vai se aprofundando na escuridão, até culminar em uma simbiose onde as trevas e o próprio Vlad se tornam uma só coisa. O resultado dessa osmose é o fato curioso de que o Conde vive um estado de morte: é frio como um cadáver, mas sedutor; deseja a vida que não tem, sugando todo o sangue alheio. Mas está morto e parece não se dar conta. Seu viver, ou melhor: seu morrer é uma angustia permanente e uma ausência de descanso eterna. Jamais poderá ver o sol.

Em contato com a luz Dracúla entra em combustão e, numa agonia dilacerante, virá cinza, ou seja, a meu ver a claridade é o único elemento que revela a real condição dos vampiros: estão mortos. Vivem amedrontando os outros com suas fachadas de monstro; escondem-se na escuridão; não sabem se relacionar, apenas escravizar; são incapazes de amar; são desesperadamente solitários; estão mortos. Querem esconder essa situação de qualquer maneira e perpetuar o engano e o auto-engano. Mas não resistem à luz, esta expõe e liberta, mostra o estado real e liberta de ter que continuar a viver uma “morte” amedrontadoramente mentirosa.

A dor que o fulgor lhe proporciona é a inevitável dor de quem precisa experimentar a verdadeira liberdade e o descanso que dela advém.

Nós não nos transformamos em morcegos, nem tampouco dormimos em caixão, estamos longe de drenar todo sangue de um outro ser humano (às vezes não falta vontade). Contudo, em alguma medida, alguns de nós se parecem com esses fictícios seres. Num certo sentido, em algumas circunstâncias, somos arredios como os tais e igualmente capazes da mais cruel das crueldades; queremos ficar escondidos e de igual modo adoramos os jogos de sedução; às vezes canonizamos nossas sombras e santificamos nossos defeitos de caráter. Também, não é mesmo verdade, que não nascemos, assim, tão dissimulados. A verdade é que vamos acostumando-nos com os acontecimentos, fazendo concessões a nossas pulsões mais egoístas, ‘egocentrizando’ as relações com a naturalidade do frio no inverno. Lá pelas tantas toda aquela inocência inicial, aqueles sonhos idealistas, aquela crença na bondade da vida se esvai e tudo o que pode restar do sujeito é uma enganosa imagem de poder ou de inteligência ou um “charme” qualquer. Assim quando olhamos para o espelho não conseguimos reconhecer a realidade de nós mesmos – esta está ocultada, negada, sufocada – tudo o que vemos é o nada de nós mesmos.

Nesse sentido, não é que em muitos de nós mortais a luz tem basicamente o mesmo efeito. Não a luz do sol, mas a LUZ de Deus.

Em contato com a “lâmpada para os meus” dá uma queimação danada nas entranhas, tenta-se fugir, evitá-la de qualquer maneira. Mas ao estar em contato com o SOL DA JUSTIÇA o personagem (figura dramática) foge, deixando em cena o ator sem a lembrança do texto, sem fala, nu.

Como tentamos evitar esse confronto!

Criamos pitbulls para evitar aproximação; maquiamo-nos pesadamente; modelamos, em nos mesmos, músculos extraordinários para intimidação do próximo; cortamos e inserimos elementos do e no próprio corpo; compramos coisas belas e caras para impressionar; nos isolamos; negamos; fugimos; mentimos; nos dopamos; agredimos; aumentamos o barulho interior. Tudo por que queremos manter oculto em que estado da alma nos encontramos. Somos amedrontados e amedrontandos.

Mas aí, um dia, o SOL rompe o frágil telhado de nosso auto-engano e irrompe com sua
luz no seio das trevas. Tudo se incendeia. As auto-ilusões viram pó e somos redentoramente expostos. É o fogo purificador. É verdade, não há como manter com aparência de vivo o que é morte. A morte não resiste esta luz.

Pai das luzes lança tua luz sobre todas as áreas da minha vida.

Guido Jesus

Rio, 14 set 2005.